No Brasil, há inúmeras nações indígenas. No entanto, no ato da colonização, os índios foram gradativamente sendo exterminados de nosso litoral, deixando heranças que ainda hoje se perpetuam. Os caiçaras são um exemplo vivo desta combinação índio/colono, terra/mar – que se estabeleceram nos costões rochosos, restingas, mangues e encostas da Mata Atlântica.
A palavra caa-içara é de origem tupi-guarani. Separadas, as duas palavras sugerem uma definição: caa significa galhos, paus, “mato”, enquanto que içara significa armadilha.
A idéia provinda desta junção seria, à primeira vista, uma armadilha de galhos. O termo, porém, denomina as comunidades de pescadores tradicionais dos Estados de São Paulo e Paraná e sul do Rio de Janeiro.
Com poucos contatos com o “mundo de fora”, os caiçaras evoluíram aproveitando os recursos naturais à sua volta, que resultou numa grande intimidade com o ambiente. Povo anfíbio, entre o mar e a floresta, estas pequenas comunidades tentam, ainda hoje, preservar seus valores de grupo. Seus territórios – praias e enseadas – são de difícil acesso, por vezes protegido por Unidades de Conservação. Atualmente estas terras são alvo da especulação imobiliária, devido à sua beleza e excelente estado de conservação.
Os pequenos e médios barcos a motor vieram fazer parte desta cultura nos meados da década de 60. Antes deste período, a agricultura era a atividade primária. O homem caiçara passou de lavrador para pescador e, hoje, podemos dizer que a pesca é a principal atividade do homem caiçara.
O aparelhamento e as embarcações sobreviveram de processos indígenas, ao passo que, na captura, predominam os elementos da cultura portuguesa. A poita, indígena, é nada mais do que uma âncora primitiva, empregada para canoas e redes.
É dela que provêm expressões comuns dos caiçaras como: canoa poitada, poitado na cama, saiu da poita etc. O termo em tupi significa parar ou estar firme. Também é possível identificar heranças na pesca provindas da imigração japonesa, como é o caso do cerco.
Os aparelhos de pesca são divididos em três grupos:
1) destinados a ferrar o peixe (arpão, fisga, anzol, espinhel);
2) as redes de emalhar e as de envolver e
3) armadilhas, fixas ou flutuantes.
Com estes, o homem caiçara pesca no “mar de dentro” para sua subsistência. O arrasto da tainha merece atenção especial, pois se trata de um momento de congregação da comunidade, onde todos trabalham para todos.
Com uma rica noção de pesca adquirida ao longo do tempo, os caiçaras começaram a trabalhar em barcos pesqueiros há cerca de 30 anos. Hoje, a maioria dos homens adultos são empregados em grandes barcos de sardinha, levando-os a pescar no “mar de fora”, desde Cabo Frio até a divisa com o Uruguai. Recebem porcentagens da pesca de acordo com sua especialidade e, em épocas de proibição da pesca (“defeso”), desembarcam de volta aos seus lares.
O sistema de cultivo utilizado pelos caiçaras tem marcada influência indígena. Comumente chamada de
coivara ou
roça de toco, esta técnica itinerante consiste, basicamente, na derrubada e queima da mata para utilizar o terreno para cultivo, seguindo-se um período de pousio, isto é, um “descanso” da terra. Observam-se elementos da cultura indígena tanto no manejo do ambiente como nos produtos, já processados, da roça.
A agricultura caiçara serve como complemento alimentar dos pescadores e seu principal produto é a farinha de mandioca – consumida em quase todas as refeições – que desde os tempos imemoriais se trata de um substituto do pão europeu e, por isso mesmo, chamada de “pão dos trópicos”. Existe, ainda, uma infinidade de produtos secundários e ervas medicinais. Seus principais produtos são: mandioca, milho, cana, feijão, guandu, inhame, entre outros.
Ao contrário do que possa parecer, a roça caiçara não se trata de uma agricultura “primitiva”, mas uma tecnologia aprimorada que se desenvolveu frente às condições tropicais. Pesquisas recentes indicam ser esta forma de cultivo um sistema agrícola auto-sustentável. No entanto, a agricultura vem perdendo espaço e interesse dentro das comunidades, por causa da perda da noção do poder aquisitivo que acarreta na compra de alimentos nas cidades mais próximas.
A extração de madeira para diversos fins como lenha, construção de canoas e casas etc., esbarra muitas vezes em proibição das leis que regem algumas Unidades de Conservação. Os caiçaras ficam assim limitados em seu próprio território. No entanto, uma das interessantes extrações é verificada na Comunidade do Aventureiro (Ilha Grande – RJ) onde os caiçaras retiram a casca do cobi (Anadenanthera colubrina) e a levam ao fogo para retirar sua resina. Esta é aplicada nas redes de pesca com a finalidade de fortalecer a malha, ficando com uma tonalidade vermelha.
Plantas são também usadas para uma grande variedade de propósitos, como alimento, medicina, construção, entre outros. O conhecimento dos caiçaras sobre ervas medicinais é bastante vasto, sendo objeto de inúmeras pesquisas. Este etnoconhecimento se traduz desde plantas tradicionalmente usadas na medicina popular, até usos medicinais de certas espécies de peixes. Esse intenso uso demonstra a forte interação homem/ambiente mantida numa cultura extremamente próxima às maiores cidades brasileiras.
Existem duas principais relações de trabalho nestas comunidades: a pesca, que agrega toda a comunidade e a agricultura, cujos limites são exclusivamente familiares. Ademais, ainda combinam atividades de coleta, extrativismo e artesanato.
A associação do peixe com a farinha de mandioca é um dos aspectos mais gerais da dieta deste povo, que se vê hoje dividido entre a necessidade de dinheiro expressa pela intensa relação com a cultura urbana e o receio de perder sua identidade de grupo de pescadores artesanais situados em áreas preservadas.
Os caiçaras são, originalmente, um povo de religião católica, herança esta gerada pelo colono português. Há várias festas relacionadas ao catolicismo, porém a mais famosa acontece no mês de maio em homenagem à Cruz (Santa Cruz). É necessário que se realize no “claro”, isto é, na lua cheia, para que todos possam comparecer. A cada ano é escolhido o festeiro – figura central na organização da festa – que, por sua vez, escolhe outros responsáveis. Durante três dias, a comunidade estará ocupada na realização da Festa de Santa Cruz.
O primeiro evento da festa é a ladainha na igreja na sexta. Já no sábado, os convidados chegam e se iniciam os batizados e mais ladainha. O último dia é mais intenso, com uma “missa festiva” com o padre mais próximo e finalmente a procissão. Andores, bastante decorados, recebem imagens de santos enquanto rezas e músicas são entoadas ao longo da extensão da praia percorrida. Após a procissão, é comum a realização de um leilão que arrecadará fundos para a festa do próximo ano.
Atualmente várias comunidades caiçaras fazem parte de Igrejas Pentecostais e Associações, dado o forte grau de contato das últimas décadas. Igrejas da Assembléia do Reino de Deus e Congregação de Cristo estão se tornando comuns e se espalhando rapidamente, o que faz com que o Catolicismo tradicional, suas festas e rituais vão se tornando cada vez mais raros e, também, são responsáveis por alguns conflitos entre comunidades.