Conto: “Caos” de Cláudia Cristina Mauro – 1º lugar no Concurso de Contos Washington de Oliveira 2019

Atualizado em: 11 de agosto de 2020

É um dia comum, como todos os outros. Calor arrebatador com prenúncio acentuado de chuva ao final do dia.

Marcos roda enraivecido pelo centro da cidade. Tem que pagar uma conta atrasada, que foi deixando para o último dia, com o intuito ilusório de que ela se dissipasse no ar.

Agora não pode mais deixá-la de lado. Só o fato de saber que ia ter de sair para se ocupar de uma conta, já mexe intensamente com a sua disposição de ânimo. Acorda de mau humor, cuspindo fogo na família ou em quem cruza seu caminho.

Marcos avista um estacionamento.

― É muito longe do banco e ainda por cima vai me levar 5 reais por alguns minutos no banco. Nem pensar!

Seus olhos são atraídos a uma pequena rua quase vazia. Quando se aproxima dá-se conta de que é a proibida faixa amarela.

― Que se dane! São só alguns minutos, ninguém vai morrer por causa disso.

Sai rápido do carro para não ser abordado por ninguém.

No banco paga a conta, e ao sair encontra o cunhado, lança sobre ele sua indignação quanto ao trânsito, estacionamentos, contas a pagar e o que mais puder reclamar.

Sérgio está em mais um dia de trabalho, mas hoje está ansioso para levar o ônibus de volta a rodoviária e fazer a troca de motorista. Fica emocionado ao lembrar que dentro de 2 horas estará no hospital, ao lado da esposa acompanhando o nascimento da primeira filha.

Caminha a passos rápidos ao ônibus. Precisa tirá-lo da garagem e levá-lo a rodoviária de outra cidade próxima.

― Ei, Sérgio, parabéns pela menina!

― Calma! Nem nasceu.

― Falta pouco.

― Nem me diga.

Quando entra na rua pequena próxima à garagem se dá conta do problema que terá. Um único carro parado na faixa amarela dificulta sua passagem. No outro lado da rua é permitido estacionar, e está cheio de carros. Vê que é impossível passar sem causar sérios danos aos que estão estacionados na faixa branca.

Corre e pergunta nervoso aos passantes se sabiam quem estacionou ali. Ninguém tinha visto nada.

Pessoas se predispõem a ajudar e vão perguntar em lojas e restaurantes próximos. Sérgio se desespera:

― Não é possível!

Karen não pode mais fingir que não está percebendo o atraso de 30 minutos do ônibus. Inconformada e tensa se dirige ao guichê.

― Não sabemos o que está acontecendo. Deve ter atrasado na garagem ou passou por algum congestionamento.

A moça sente uma fraqueza na alma, uma dor no peito. Tem vontade de abaixar a cabeça e chorar. Lembra-se da ligação do irmão há uma hora antes.

― Você precisa vir rápido ao hospital, Karen. Os médicos dizem que o pai tem apenas algumas horas.

Uma pausa para o pranto de ambos.

― Não é verdade!

― Corre para cá, Karen, que acho que ele sabe que vai morrer. Já falou com todos os filhos, só falta você.

― Ele estava bem.

― KAREN, NOSSO PAI ESTÁ MORRENDO!

― …

― Ele chama por você, acho que quer se despedir.

― Eu pegarei um ônibus e …

― Corra e pegue o primeiro que der.

Karen vê que a moça do guichê está olhando séria e irritada para ela.

― Você está segurando a fila, poderia se afastar, por favor?

― Eu preciso chegar logo, moça. Eu tenho que…

― Nós estamos fazendo tudo o que podemos.

― Não tem outro ônibus para colocar na linha?

― Levará horas para conseguirmos isto.

A moça abalada e abatida senta-se num lugar afastado, para poder dar vazão aos seus sentimentos. Coloca a cabeça entre as mãos e chora.

Ronaldo espera quase derretendo na rodovia a passagem do ônibus. Os outros estão cheios de raiva e discutem incessantemente o atraso, enquanto ele amarga pensamentos negativos:

Eu já ganho por comissão, se eu atrasar o monstro do chefe vai me comer vivo, vai me envergonhar na frente de todos.

Agitado, tenta esperar como os outros. Todo ônibus que aponta na rodovia, ele se enche de esperança, para cair em desespero logo depois.

Este é o horário que tem mais compradores na loja. Eu vendi tão pouco este mês. Também as vendas caíram.

― Pessoal, não é melhor ligar para a rodoviária? ― grita um no meio da multidão.

― Já tentei e não consegui.

― Eles fazem de propósito para não receberem reclamações.

― Que desgraça!

Ronaldo não consegue evitar seus pensamentos insistentes:

Com o movimento caindo, eles estão pensando em mandar gente embora. Devem estar de olho em cada um. Vão me escolher na certa.

O homem corre desenfreado de volta a sua casa. A esposa se assusta ao vê-lo entrar correndo.

― O que foi, homem?

― O busão não veio até agora.

― Que inferno!

Ele sai em direção à garagem.

― O que você está fazendo?

― Vou de carro.

― E gastar gasolina, tá louco?

― É melhor do que perder o emprego.

― Mas o mecânico disse que o carro não está bom.

― Ele fez os consertos que eu pude pagar.

― E é o suficiente?

― Tem que ser!

Marta não vai até o guichê, mas vê pelas reclamações dos que lá se apertam, que algo aconteceu com o ônibus. Faltam apenas 30 minutos para sua entrevista de emprego. Levou 3 anos para conseguir uma entrevista dessas.

Corre ao orelhão e liga, explica sua situação e ouve a resposta:

― Moça, tem muitos candidatos aqui que chegaram na hora. O que eu digo para eles? Que você tem preferência?

― Você não pode, pelo menos, passar minha entrevista para a última?

― Querida, nós não trabalhamos para você.

― Por favor, eu preciso dessa chance.

Um silêncio exasperador na linha.

― Vou falar com o entrevistador.

― Obrigada!

Aqueles momentos são como se fossem os piores da sua vida. Extremamente nervosa, ela sua em bicas, sua respiração parece estática, sente tonturas, seu coração parece saltar do peito, suas pernas estão cravadas no chão.

― Ei, moça, não vai dar. Ele tem muito que fazer. É um desrespeito com os outros mudarmos horários. Ele disse que não pode ficar a sua mercê, tem compromissos marcados o dia todo.

Um silêncio triste se fez. A sensação de alguém que leva um tiro e espera revoltado a morte.

― Ei, moça? Desligou?

― Tudo bem então.

― Tchau. Vê se não dá bola fora da próxima vez.

Marta olha ao seu redor, mas não consegue enxergar nada claro. Consegue chegar até a lanchonete, está com uma sede louca. Antes de pedir uma garrafa, lembra-se que gastou tudo o que tinha no cartão telefônico, só tem uns míseros trocados para a condução de volta. Olha o dinheiro para a condução e se afasta com sede da lanchonete. Senta-se derrubada num banco, onde perto Karen chora. Vê Karen chorando, abaixa respeitosamente aos olhos, para não vexar a outra, e se entrega a sua própria dor.

Ronaldo percebe a chuva fina que começa a cair. Sabe o que isto significa numa rodovia cheia de óleo. Está precisando que o carro dê o melhor de si, mas ele não corresponde as suas intenções.

Não há muito tempo para pensamentos quando o carro roda na pista, e bate fortemente na grade.

Dr. Caio sente que o trânsito está parado há um longo tempo. Ele tem pressa. Sai do carro, e vê a rodovia congestionada por um longo e interminável trecho. Pergunta para o motorista do caminhão que está ao seu lado:

― Você sabe o que houve?

― Parece que foi uma batida.

― Séria?

― Parece que sim. A polícia e a ambulância já chegaram, mas ainda não liberaram nenhuma pista.

Ele corre para o carro e liga para o hospital. A atendente passa para a enfermeira.

― Dr. Caio, por favor! A cirurgia não pode esperar, nós vamos perder o paciente!

― Estou preso na rodovia. Alguém se acidentou. Está um congestionamento de quilômetros.

― Meu Deus! O que faremos, Dr?

― Você precisa achar outro médico.

― Onde eu vou achar um neurocirurgião?

― O Dr. Lair.

― Ele está em São Paulo.

― É preciso removê-lo para um hospital que tenha…

― A remoção pode causar a morte do paciente, a situação é extremamente delicada.

― Então só nos resta esperar eu chegar.

― Não há tempo.

― Carmem, você precisa arrumar alguém.

― Eu vou tentar.

Sérgio sabe das consequências do atraso do ônibus. Mais de uma hora. Sabe que será culpabilizado pelo ocorrido. Ninguém acha o dono do carro. A polícia custa a chegar, porque estão atendendo um caso sério de assalto. Um agente de trânsito multa o carro, mas precisa da liberação da polícia para guinchá-lo, e nem ele consegue apressar tudo. O agente está nervoso por causa de sua impotência e sobra xingamento até para Sérgio. Ele liga para o hospital para saber da esposa e não consegue nenhuma notícia.

Lúcia preocupa-se com a demora de Sérgio. Lutara toda a gravidez para manter a tranquilidade, mas naquela última hora perdera toda a paz, sua cabeça está cheia de preocupações por causa do marido.

Sente-se sozinha e abandonada naquele quarto quente e impessoal, precisa ardentemente da presença do marido. Não consegue se imaginar sozinha na sala de parto. Conta com a participação do marido. Seu estado de tensão chega a tanto, que sua pressão sobe, e os médicos são chamados com urgência.

Um casal de idosos que aguarda pacientemente na rodoviária ― até agora ― a chegada do ônibus, perde a paciência.

― Rosa, não podemos esperar mais. Vamos para casa ligar para o Ângelo e avisar que não vamos mais.

― Por que a correria, Jairo?

― Por acaso, você quer nosso filho esperando por nós naquela rodoviária violenta?

― Não, claro que não.

― Então, vamos ligar logo antes que ele saia.

― Então corre!

― Se acontecer algo com ele…

― Não fale isto, por favor!

O casal, de mãos dadas, acelera passos em direção ao bairro violento onde moram.

Uma simples briga de bar acaba tomando proporções inesperadas, quando um homem armado retorna ao local, a fim de acertar contas com o infeliz com quem se desentendeu e nem lembra a razão.

As pessoas, ao verem a arma, entram em pânico e o homem completamente bêbado e fora de si se assusta, atirando para todos os lados.

Rosa e Jairo passam em frente ao bar, e ficam presos entre as pessoas que saem correndo do local.

― Rosa é um tiroteio!

― E agora?

― Não tem para onde ir, se abaixa!

Leva um longo tempo para a paz se restabelecer.

Jairo levanta os olhos, e fica horrorizado ao ver da rua o sangue dentro do bar.

― Rosa, vamos logo embora daqui!

Ele se levanta com o olhar grudado nas várias pessoas feridas. Não vê a polícia, nem ambulância.

― Rosa, Rosa!

A mulher continua abaixada e imóvel no chão sujo da rua. Ele se abaixa.

― O que foi, Rosa? Levanta!

Ele pega a mulher e não custa a ver um tiro a altura do coração.

― Não pode ser! Não, a Rosa não!

As pessoas se voltam para ele que grita:

― Chamem a ambulância!

― Já chamaram, senhor.

― Por que a demora? A Rosa pode morrer.

Ninguém acha que ela está viva, só ele.

Sérgio entra correndo no hospital, tamanha pressa o faz esbarrar em Jairo.

― Desculpe, senhor, minha mulher vai ter um bebê.

― Bom para você.

Que mau humor desse senhor!

Karen corre também pelo hospital até encontrar o irmão chorando, sentado na sala de espera.

― Por favor, não diga que…

― É tarde demais!

Marta caminha sem rumo, não tem coragem de voltar para casa. A família está esperando ansiosamente para saber da entrevista. Vão ficar irritados com toda a situação e será atribuída culpa a ela, como sempre.

Para na banca de jornal e compra vários jornais de emprego. Seu dinheiro se esgota, não dá mais para pegar uma condução de volta. Relutante se põe a caminhar lentamente para casa, com o peso do mundo nas costas e a sede ressecando o corpo.

Dr. Caio entra esbaforido na sala de cirurgia a tempo de ver o lençol ser colocado sobre o morto. O paciente não suportou a demora e ele não suportará a culpa.

― Eu poderia ter salvado ele ― diz à enfermeira, que o observava penalizada.

― Não pense nisso! Que culpa você teve no congestionamento? Se você pudesse ter estado aqui, é lógico que teria salvado.

Outra enfermeira aparece.

― Estamos cheios de pacientes para serem salvos chegando.

O médico segue o procedimento com o ferido ensanguentado a sua frente, quando Ronaldo acorda e pergunta:

― Dr, estou morto? Quanto sangue! O que houve?

― Você quebrou apenas o braço. Este sangue todo é de um corte profundo na cabeça, mas não letal.

― O que é letal?

― Eu quis dizer que você não vai morrer disso.

― Ainda bem!

Dr. Caio sai no corredor e se assusta com a quantidade de pessoas feridas, que chegam de um tiroteio.

Um senhor o segura fortemente nos braços.

― Dr, o que fizeram com a minha Rosa?

― Eu ainda não sei, eu…

― A Rosa não está morta, não é?

― Eu acabei de chegar.

― Ela não pode morrer, Doutor!

O médico descobre que a única pessoa que morreu no tiroteio tinha sido uma senhora. Procuram alguém para identificá-la, e ele reconhece Jairo se encaminhando para o local. Sai correndo dali, para não ouvir a gritaria que não pode suportar.

Este senhor não está pronto para perder a mulher. Também quem está pronto?

Sérgio consegue agora curtir a filha recém-nascida no berçário, depois da extrema tensão que passou ao saber que a esposa teve complicações, e ele não pôde estar junto. Lúcia passa bem, mas Sérgio vive sentimentos conflitantes, a alegria em ver a filha saudável pela primeira vez e a dor e culpa de não ter estado ao lado da esposa. Tinha prometido e a sensação de não cumprir uma promessa o diminuía perante si mesmo e de Lúcia.

Marcos chega em casa ainda mais irritado.

― O que foi, Marcos? Sai ruim e volta pior? ― pergunta inconformada a esposa.

― Um guardinha de merda me multou, passou até sermão porque eu estava na faixa amarela. Queriam guinchar o carro, mas consegui me safar.

― Por que você fez isto?

― Não achei lugar perto do banco.

― Por que não deixou num estacionamento?

― E pagar por um tempinho?

― Marcos, você tem bastante dinheiro para isto! E tenho certeza de que a multa saiu muito mais cara.

― O país de merda! Tanto estardalhaço por causa de um tempinho na faixa amarela.

― Leis são para serem cumpridas.

― Para quê? Ninguém cumpre lei neste país, por que EU deveria cumprir?!

 

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