Artista premiado no Festival de Marchinhas apresenta manifesto

Atualizado em: 16 de fevereiro de 2018

Foto/divulgação: Júlio César Mendes

Julio César Mendes artista premiado no 13º Festival de Marchinhas Carnavalescas de Ubatuba apresenta manifesto após receber críticas as fantasias usadas durante as apresentações no evento. O texto foi publicado ontem (15) no seu perfil em rede social. Confira a íntegra:

A furta-cor da mente
Julinho Mendes – Brasileiríssimo caiçara

Júlio César Mendes de Souza Graça Nunes Pereira Oliveira Gil Motta Carneiro. Lamento não ter no meu nome, um sobrenome índio e negro. Porque? Mas isso não importa e muito menos importa a cor de minha pele, o que importa é a cor que está por debaixo: a cor vermelha! A mesma de Jesus Cristo, de Gandhi, de Mandela, de madre Tereza de Calcutá,… Esse vermelho está por debaixo da pele, também de alguns desumanos e corrompedores da humanidade. Agora passamos a perceber que a questão não é a cor da pele e muito menos a cor que está por debaixo da pele. A questão e o problema é a cor que está na mente e consciência de cada um de nós, e aí a cor é mutante que varia entre a limpa e a suja! O que fez Jesus Cristo, o que fez Hitler? O que fizeram os santos, o que fizeram os diabólicos? Na minha ignorância sei apenas que fizeram e fazem o bem e o mal.

Sou amante do folclore e da cultura brasileira, sou do tempo do saci, do boitatá, do lobisomem,… de Câmara Cascudo, Lima Barreto, Monteiro Lobato (viva Lobato!). Sou do tempo do boi da cara preta, do atirei o pau no gato,… sou de todo esse tempo brasileiro e me orgulho mais ainda de ser do tempo do boi do mestre Veiga, do boi Carvão do mestre João Albado, das congadas de São Benedito e Nª Senhora do Rosário, do Xiba, das folias de Reis e do Divino, enfim, sou e permaneço no tempo da minha cultura brasileira caiçara e ainda lembro do negro Amaro, do negro Bimba, do carnavalesco Arcidão, Jorge Fonseca, Miguel Ageu.  No Bloco do Saco pintei minha cara com carvão. Nas GRES Unidos da Alegria me fantasiei de português, de índio, de negro. No bloco da Caxorrada me travesti com saia, batom e purpurina. Nos treze anos de Festival de Marchinhas Carnavalescas de Ubatuba me vesti de Guaruçá, de Lula, de homem bomba, de ETE, de pierrô, de traveco, de mágico, de negro, de branco, sempre de rosto pintado da cor da alegria, de cara feliz e de alma luminosa que Deus me deu. É assim que vivo minha cultura folclórica festiva! É a minha cachaça!

Nesse sentido vejo vidas passando dentro de quatro paredes, olhando para uma janelinha de poucas polegadas e não vivenciando e praticando a verdadeira cultura de nosso país; pelo contrário, estão trocando o guaraná por coca-cola, o Saci por Halloweem; e a cabeça vai inchando e vai surgindo crenças dominadoras que me proíbem de cantar: “Atirei o pau no gato-tô-tô”, “Olha a cabeleira do Zezé”; em contrapartida, hoje a criançada e jovens estão cantando o funk da “surubinha de leve”; estão entrando, como plâncton, nas garras da Baleia Azul.

Calma e Cuidado! O processo de mudança e transformação da cultura e costumes é longo, mas vem acontecendo, para o bem e para o mal. Por enquanto Eu não consigo mudar, de uma vez só, a cultura e costume em que me criei, então peço paciência e respeito por isso. Vivi a cultura da malhação do Judas e pratiquei isso até o ano de 2003, após essa data percebi que não tinha mais razão de existir aquilo, então parei, e vem se extinguindo em todo o Brasil, mas ainda não acabou. Em contrapartida, a malhação agora está sendo, jogando álcool e botando fogo em índio, jogando ácido e matando mendigo debaixo de viaduto. Calma e cuidado!

Vou falar do pouco que estou vendo da nova cultura e modernização de costume e vou te dizer que aceito e respeito sua cabeleira pintada de azul, de pink, de bermuda em meia bunda mostrando o rego, de piercing na língua, dos funks…

Segundo os dicionários, racismo é: “conjunto de teorias e crenças que estabelecem uma hierarquia entre as raças, entre as etnias. E ainda, doutrina ou sistema político fundado sobre o direito de uma raça (considerada pura e superior) de dominar outras”.

Quantas fantasias de rostos pintados de preto e de branco assisti desfilando nas escolas de samba de São Paulo e do Rio de Janeiro?

Estão criticando a minha fantasia, estão descendo a lenha na FUNDART – Fundação de Arte e Cultura de Ubatuba por permitir a interpretação de uma música fantasiado de “nego” véio. Será que esses críticos já não fazem parte, até sem saber, de uma doutrina ou sistema político que quer dominar a raça da cultura artista? Que quer ser superior, intimidar e querer transformar uma geração que se pintava para o carnaval? Não está acontecendo aí um novo preconceito? Tudo é relativo! Vamos acabar com as manifestações folclóricas e culturais de nosso país? Não posso ter uma namoradeira negra na janela de minha casa? Deixarei de apreciar o boi bumbá por que lá tem as fantasiosas negras Catirinas? São perguntas que faço, e não afirmações. A coisa é muito delicada, estamos numa metamorfose onde precisamos ter paciência, entendimento, tolerância, que aos poucos as coisas vão se acomodando e tomando forma, para o bem e para o mal. Podem ter certeza que, assim como parei de fazer bonecos de Judas para ser malhado, deixarei de ser malhado em pintar a cara de preto (só de preto!).

Vou parafrasear aqui o samba de Ataulfo Alves, que parafraseou o filho de Deus, Jesus: “Atire a primeira pedra, ai ai ai. Aquele que nunca cometeu preconceito”. A gente olha o rabo do outro, mas deixamos de colocar espelhos opostos para olhar o nosso próprio rabo.

Irei completar 56 anos de idade, ainda tenho meus pais e eles me ensinaram a respeitar as pessoas, me ensinaram a rezar, e pedir abenção todos os dias a eles, me ensinaram a ser honesto e responsável, me permitiram e deram liberdade para eu ser um artista, carnavalesco, folclorista, brincante; eles não me proibiram de pintar o rosto de preto, de branco, de rosa… Dentro da limitação cultural, social, intelectual que todos nós temos e que teremos por muitos séculos ainda, a gente erra e com a correção dos erros é que aprenderemos a acertar. Dentro dos ensinamentos de meus pais, o maior deles foi terem me ensinado a ser humilde e pedir desculpas e perdão a quem eu tenha ofendido, então, a quem se sentiu ofendido com nossas fantasias de negros, Eu, Julinho Mendes, e minha companheira Claudia Gil, que pactua e divide esse texto em conjunto, pedimos desculpas. Pedimos desculpas à FUNDART, por envolve-la nessa história e agradecemos às pessoas que estão ao nosso lado nos dando força e apoio. Vou pedir para que não façamos guerra. Vamos sim brasileiros, de sangue índio, português e negro, guerrear contra a corrupção, que vem transformando todo esse Brasil numa imensa senzala multicor.

Não me sinto e não me sentirei rebaixado, muito pelo contrário, cresço mais um degrau e me fortaleço para continuar fazendo a cultura de meu país. Continuarei sendo o saciólogo de n° 640 de São Luiz do Paraitinga, continuarei comemorando o dia do Saci em Ubatuba, continuarei comemorando o dia do índio, o dia do negro, o dia do caiçara, e nessa epopeia onde as etnias estão perdendo suas identidades, irei criar e comemorar o dia do Português (se é que já não tem) com muita bacalhoada com batata. Ainda continuarei fazendo Folias de Reis, me vestindo de rei Baltazar; continuarei dançando com o Boi de Conchas. -E na lenda da gruta da Sununga? Como farei, EU, para me transformar de dragão em homem loiro e vice-versa? Minha pele é marrom brasileira! Como é que irei me transformar em Loiro? Devo me pintar de branco ou escrevo na minha barriga marrom: “Loiro”? E o que dirá a sociedade dos loiros e dos dragões?

Enfim, até quando Deus permitir continuarei sendo Julinho Mendes, de pele brasileira, de sangue vermelho e de mente furta-cor, ainda no processo de entender a cultura atual e pedindo para que entendam e respeitem a cultura em que me criei. Viva a fantasia do carnaval!”

Veja também:

Nota de esclarecimentohttps://fundart.com.br/nota-de-esclarecimento/

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